Por que gays não podem doar sangue?

Na última segunda-feira, dia 20 de abril de 2020, o deputado David Miranda (PSOL/RJ) encaminhou à Sua Excelência o Senhor Ministro Dias Toffoli, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, uma Solicitação de urgência no julgamento da ADI 5543, que tem por objetivo derrubar a norma inconstitucional que proíbe que LGBTs doem sangue, causando assim uma perda anual de aproximadamente 20 milhões de litros de sangue.

Este número já causava uma grande complicação nos bancos de sangue, sendo necessário realizar diversas campanhas pedindo à população para que doe sangue. Hoje, em tempos de COVID-19, a situação é muito mais caótica. Seja por medo, por necessidade de isolamento, por pertencer ao grupo de risco, por insegurança, as pessoas recuaram na doação de sangue, causando uma queda drástica no volume que já deixava a desejar antes da pandemia. Frente a esta crise, o deputado tomou medidas para tentar acelerar a decisão do STF e salvar vidas que podem depender dessa doação que, em pleno século XXI, ainda é proibida para uma comunidade já estigmatizada.

A medida foi adotada nos anos 80 pela OMS, cujas regras ainda são adotadas por Ministérios da Saúde diversos no mundo, pois foi o auge do HIV, vírus que acometia principalmente os LGBTs na época devido à sua maior facilidade de transmissão entre homens que mantinham relações com outros homens — e não precisamos pesquisar muito para saber que os anos 80 e início dos 90 não foram nenhum exemplo de comportamentos saudáveis para ninguém. No entanto, ainda hoje em 2020 temos este critério de eliminação que é absurdo, levando a uma perda significativa de um volume de sangue que poderia salvar muitas vidas.

MAIS QUE MIL MARACANÃS

Vamos fazer uma conta bem simples. Cada bolsa de sangue contendo 450mL pode salvar até 3 vidas. Com 20 milhões de litros de sangue desperdiçados por ano, poderíamos salvar em média 133.333.332 vidas. São mais de 133 milhões de vidas. Dá aproximadamente para lotar 1.691 Maracanãs. CENTO E TRINTA E TRÊS MILHÕES DE VIDAS salvas, independente se for vítima de COVID-19, acidente de trânsito, problemas em alguma cirurgia, hemorragia de qualquer tipo. Mais de 63% da população brasileira pode ser morta pelo preconceito. Se eu, você ou alguém da família precisar, a salvação pode vir de 1/3 de uma bolsa de sangue.

Antigamente existia o conceito de grupo de risco, que era destinado a gays, hemofílicos, haitianos e usuários de drogas. Hoje, definimos o comportamento de risco como identificador para pessoas com maior possibilidade de contrair HIV e outras doenças. Estes comportamentos podem ser, principalmente, o compartilhamento ou reutilização de agulhas, seringas e objetos perfuro-cortantes, e pessoas que fazem sexo de forma desprotegida, especialmente com múltiplos parceiros. Comportamentos que não são exclusivos de LGBTs, mas sim a toda uma população independente de gênero, classe, raça, religião, idade ou orientação sexual.

O CHÃO DO METRÔ

Tem um exemplo que eu gosto muito de usar quando algumas pessoas debatem comigo a respeito da doação de sangue por LGBTs.

Imagine que existem dois cozinheiros indo trabalhar de metrô. Um deles, no horário de pico, esfrega as mãos no chão do metrô e se mantém assim o dia todo. Já o outro cozinheiro não tem este comportamento. Então, no horário do seu almoço, você entra decide ir a um restaurante. O cozinheiro do restaurante que você escolheu é o cozinheiro que esfregou as mãos no chão. Por pressa ou falta de vontade, ele não lavou as mãos nem os alimentos e fez sua comida com tudo sujo. Já o outro cozinheiro, mesmo sem ter esfregado as mãos no chão, antes de preparar a refeição lavou as mãos conforme as regras de higiene. Você acaba com uma infecção alimentar devido ao comportamento do cozinheiro que o colocou em risco.

Agora, atente-se ao detalhe: em nenhum momento importou a orientação sexual do cozinheiro. O comportamento dele não foi diretamente influenciado por com quem ele se relaciona e não foi a orientação sexual dele que causou uma infecção alimentar e sim os maus hábitos dele. É a mesma coisa com o sangue.

Em diversos comentários sobre artigos e postagens que se relacionam ao assunto, podemos ver pessoas que garantem que, quando há uma desconfiança por parte do agente de que aquela pessoa seja LGBT, já que muitos mentem para poder doar e salvar vidas, eles chegam a descartar o sangue e entregar o resultado dos exames feitos no sangue como se nada tivesse acontecido. Ou seja, se isso acontece, eles testam o sangue, confirmam que é um sangue que pode salvar vidas, e mesmo assim descartam.

É aqui que chegamos à pergunta do título: Por que gays não podem doar sangue? Por que pessoas de uma comunidade inteira, com 20 milhões de litros de sangue disponíveis, que podem salvar mais do que 130 mil vidas por ano, ainda são impedidas de doar sangue, uma vez que já foi provado que o que define o risco é o comportamento e não a orientação sexual?

Segundo o Pink News, site LGBT do Reino Unido, depois que os EUA relaxaram a proibição de doação de sangue e substituíram por uma política que exige que homens homossexuais não façam sexo por um período de 12 meses para poder doar, não houve aumento significativo no número de casos de sangue contaminado entre os doadores de sangue, passando de 2,6 entre 100.000 para 2,9 entre 100.000.

A JANELA IMUNOLÓGICA

Uma das maiores preocupações da doação de sangue é a questão da janela imunológica, ou seja, o tempo entre a exposição ao risco de contrair uma IST e a mesma ser detectada. Para que haja maior segurança, é necessário respeitar o tempo da janela e, antes de fazer a doação de sangue, ir a uma UBS fazer os testes rápidos para ter certeza se você contraiu alguma IST após um comportamento de risco e, caso tenha contraído, iniciar o quanto antes o tratamento. Caso contrário, realizar a doação de sangue.

De acordo com a Secretaria do Estado de Saúde, a janela imunológica para o HIV e Sífilis é de 30 dias, enquanto a janela das Hepatites B (HBV) e C (HVC) é em torno de 60 a 120 dias. Sabendo disso — e lembrando que as Infecções são bem “democráticas” já que podem infectar qualquer pessoa — seria interessante todos respeitarem a janela, não apenas homens homossexuais.

A FALTA DE INFORMAÇÃO E A SOBRA DE PRECONCEITO É UMA SOMA MORTAL

Já me peguei em duas situações bem desconfortáveis na minha vida onde me deparei diretamente com a gravidade da falta de informação e da falta de sangue disponível.

A primeira delas foi ano passado, quando infelizmente passei por uma situação de abuso sexual, e fui para o CRT (Centro de Referência e Tratamento de DST Aids) receber o PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV), quando eu ouvi um senhor gritando, aos prantos, dizendo que era impossível ele ter a “doença de viado”, que ele não era “viado” e chegando a culpar o próprio filho de tê-lo contaminado porque eles usavam os mesmos utensílios de cozinha. Em um primeiro momento eu fiquei chocada, já que eu tive uma educação sexual básica sobre como me proteger na escola e também era muito atenta aos programas da MTV. Depois de alguns minutos que a minha bolha foi estourada e caí na realidade de que nem todo mundo teve acesso às mesmas informações que eu.

“Se ao menos ele tivesse tido acesso ao PEP, talvez não estivesse nessa situação”, foi tudo o que eu consegui pensar na hora (eu também estava muito nervosa naquele momento).

A segunda situação foi quando acompanhei minha avó na UTI. Por algum motivo, ela teve uma hemorragia muito forte e ela precisava de sangue. No quarto ao lado, um policial que, durante uma perseguição, sofreu um acidente e estava em coma. Perdeu muito sangue e também precisava de bolsas de sangue. Então, enquanto eu tentava cochilar sentada numa cadeira, eu ouvi a enfermeira dizendo que o banco de sangue estava com pouco sangue O-. Naquele momento, meu único pensamento foi que as pessoas deveriam doar mais sangue, já que eu mesma estava impedida no momento por questões médicas. Ao ver os dados sobre quanto sangue estamos perdendo por ano devido a uma regra inconstitucional.

Nós, como país, precisamos evoluir muito nas questões LGBT. Apesar dos poucos avanços que estamos conseguindo, situações como essa nos prendem a um retrocesso causando não apenas um impacto cultural, mas social e até econômico. Vidas são diariamente cerceadas por darmos prioridade a um preconceito que já deveria estar erradicado.

Espero, não apenas como futura operadora do Direito, mas como ser humano, que a Solicitação do deputado David Miranda seja atendida o mais breve possível para que não só hoje, em dias de pandemia, mas sempre possamos salvar mais vidas. Vidas estas que podem ser a sua, a minha, a de pessoas queridas.

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